quinta-feira, 15 de março de 2012

A Idade Média: in O Mundo de Sofia

CAPÍTULO XV: IDADE MÉDIA
“... percorrer apenas uma parte do caminho não significa enganar-se...”.
Na semana seguinte, Sofia não soube nada de Alberto Knox. Também não recebeu
mais postais do Líbano, mas continuou a falar com Jorunn acerca dos postais que elas
tinham encontrado na cabana do major. Jorunn ficara nervosíssima, mas como depois nada
mais sucedera, o seu medo perdeu-se entre os trabalhos de casa e o “badminton”.
Sofia leu as cartas de Alberto muitas vezes e procurou uma referência que pudesse
explicar a questão de Hilde.
Assim, também podia assimilar bem a filosofia antiga. Depressa deixou de
confundir Demócrito e Sócrates, Platão e Aristóteles.
Na sexta-feira, dia 25 de Maio, estava junto ao fogão e fazia o jantar porque a mãe
não tardaria a chegar a casa vinda do trabalho. Era o acordo habitual de sexta-feira. Nesse
dia, Sofia cozinhava sopa de peixe com batatas e cenoura. Nada mais fácil.
Lá fora, levantara-se vento. Enquanto mexia a panela, Sofia voltou-se e olhou pela
janela. As bétulas balançavam como espigas. De repente, algo bateu contra a vidraça. Sofia
voltou-se de novo e descobriu então um bocado de cartão colado à janela. Aproximou-se e
viu que se tratava de um postal ilustrado. Através do vidro, leu: "Hilde Mõller Knag, a/c de
Sofia Amundsen..." Pensara imediatamente nisso. Abriu a janela e recolheu o postal.
Teria percorrido o longo caminho desde o Líbano transportada pelo vento?
Também este postal tinha a data: "Sexta-feira, 15 de Junho".
Sofia tirou a panela do fogo e sentou-se à mesa. No postal, estava escrito:
“Querida Hilde! Não sei se ainda estarás a festejar o teu aniversário quando leres
este postal. Por um lado, espero que sim, de qualquer modo tenho esperança que ainda não
tenham passado muitos dias.
Que passem uma ou duas semanas para Sofia não significa que suceda o mesmo
conosco. Eu regresso a casa na noite de S. João.
Nessa altura, ficaremos sentados no balanço e poderemos olhar juntos para o mar,
Hilde. Temos muito para conversar. Beijos do pai, a quem por vezes o conflito milenar
entre judeus, cristãos e muçulmanos deprime. Tenho que estar sempre a lembrar-me que as
três religiões remontam a Abraão. Mas, nesse caso, não têm de rezar ao mesmo Deus?
Aqui, a história de Caim e Abel repete-se todos os dias.
PS. Poderias dar cumprimentos à Sofia? Pobre criança, ela ainda não compreendeu
como as coisas estão relacionadas. Mas talvez tu já tenhas compreendido.”
Sofia inclinou-se esgotada sobre o tampo da mesa. Era claro que não compreendia
como as coisas se relacionavam.
Será que Hilde compreendia?
Se o pai de Hilde podia pedir-lhe que apresentasse cumprimentos à Sofia, era
porque Hilde sabia mais sobre Sofia do que Sofia sobre Hilde. Era tudo tão complicado que
Sofia preferiu voltar ao fogão. Um postal que ia bater contra a janela da cozinha. Correio
aéreo no verdadeiro sentido da palavra...
Mal Sofia colocou de novo a panela no fogão, o telefone tocou.
Se fosse o seu pai! Se ele voltasse para casa, ela contar-lhe-ia tudo o que lhe
acontecera na semana anterior. Mas devia ser apenas Jorunn ou a mãe... Sofia correu para o
telefone.
- Sofia Amundsen. 111
- Sou eu -, respondeu uma voz no outro lado da linha.
Sofia tinha a certeza de três coisas: não era o pai.
Mas era uma voz masculina. E ela estava convencida de já ter ouvido uma vez esta
voz.
-Quem fala? - perguntou.
- Fala o Alberto.
- Ah...
Sofia não sabia o que havia de responder. Reconheceu a voz do vídeo de Atenas.
- Estás boa? - Sim...
- Mas a partir de agora já não há mais cartas. - Mas eu não te mandei nenhuma rã!
- Temos de nos encontrar, Sofia. E depressa, compreendes?
- Mas por quê?
- Estamos quase a ser encurralados pelo pai de Hilde.
- Encurralados como?
- Por todos os lados, Sofia. Temos de colaborar.
- Como...?
- Mas infelizmente, só me podes ajudar quando eu te tiver falado da Idade Média.
Temos ainda de falar do Renascimento e do século XVII. Além disso, Berkeley
desempenha um papel-chave.
- Não havia um retrato dele na cabana do major?
- Sim, exatamente. Talvez a batalha se trave justamente por causa da sua filosofia.
-Falas como se se tratasse de uma espécie de guerra.
- Eu diria que é uma guerra espiritual. Temos de tentar chamar a atenção de Hilde
e trazê-la para o nosso lado, antes que o seu pai regresse a Lillesand.
- Não estou a perceber nada.
- Talvez os filósofos te abram os olhos. Encontramo-nos amanhã de madrugada às
quatro, na Igreja de Santa Maria. Mas vem sozinha, minha filha.
- Tenho de ir a meio da noite?
- ...clic.
-Está?
Que infame! Tinha desligado. Sofia voltou a correr para o fogão. Por pouco a sopa
não tinha vindo por fora. Ela mexeu os pedaços de peixe e as cenouras na panela e baixou o
lume.
Na Igreja de Santa Maria? Era uma velha igreja de pedra da Idade Média. Sofia
achava que ali já só se realizavam concertos e missas muito especiais. No Verão era aberta
por vezes para os turistas. Mas não estaria fechada a meio da noite?
Quando a mãe voltou para casa, Sofia tinha posto o postal do Líbano no armário,
junto às outras coisas de Alberto e de Hilde. Depois do jantar, foi a casa de Jorunn.
-Temos que ter um encontro um pouco especial - afirmou, quando a amiga abriu a
porta. Não disse mais nada até terem fechado a porta do quarto de Jorunn.
- É um bocado complicado - prosseguiu Sofia.
-Conta!
- Tenho de dizer à minha mãe que hoje durmo em tua casa.
- Que bom!
- Mas isso é o que eu vou dizer, compreendes? Vou estar noutro local.
- Valha-me Deus! Isso tem alguma coisa a ver com um rapaz?
-Não, tem a ver com Hilde. 112
Jorunn assobiou baixo. Sofia olhou fixamente para ela.
- Venho cá hoje à noite - disse - mas tenho de sair por volta das três. Tens de me
encobrir até que eu esteja de volta.
- Mas onde vais? Qual é o teu plano?
- Desculpa. Não posso dizer nada.
Dormir em casa de Jorunn não era problema, pelo contrário. Sofia tinha por vezes
a sensação de que a mãe gostava de ter a casa para si.
- Mas vens amanhã para o café-da-manhã? - foi a única pergunta que fez quando
Sofia saiu.
- Caso não venha, tu sabes onde estou.
Porque é que dissera aquilo? Era esse precisamente o ponto fraco do seu plano. A
visita de Sofia começou como a maior parte das visitas quando se dorme fora de casa, com
conversas íntimas até alta noite. A diferença é que desta vez Sofia pôs o despertador para as
três e quinze quando elas se deitaram por fim, cerca da uma. Jorunn acordou quando Sofia
desligou o despertador duas horas mais tarde.
- Tem cuidado – pediu ela.
Sofia saiu para a rua e pôs-se a caminho. A Igreja de Santa Maria ficava a alguns
quilômetros de distância, mas apesar de ter dormido apenas duas horas, sentia-se
extremamente desperta. Por cima das colinas, a oriente, o céu estava vermelho.
Quando ela chegou à entrada da velha igreja de pedra, eram quase quatro. Sofia
empurrou a porta pesada. Estava aberta!
A igreja estava deserta e imersa num profundo silêncio.
Através dos vitrais penetrava uma luz azulada que tornava visíveis milhares de
particularzinhas de pó que andavam no ar. O pó parecia concentrar-se em raios espessos
que atravessavam a nave da igreja.
Sofia sentou-se num banco, no centro. Observou o altar e um velho crucifixo de
cores desmaiadas.
Passaram-se alguns minutos.
Subitamente, o órgão começou a tocar. Sofia não se atrevia a voltar-se. Parecia
uma melodia muito antiga; certamente, medieval. Pouco depois, voltou o silêncio. Ouviu
então passos atrás de si que se aproximavam. Deveria olhar para trás? Preferiu continuar a
fixar Cristo na cruz.
Os passos passaram ao lado dela, e viu então uma figura avançar pela igreja. O
vulto trazia um hábito castanho de monge. Sofia podia ter jurado que se tratava de um
monge medieval.
Tinha medo, mas não ficou em pânico. O monge fez uma curva em frente à
balaustrada do altar e subiu ao púlpito.
Inclinou-se sobre o parapeito, olhou para Sofia e disse em latim:
-Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto. Sicut erat in principio et nunc et semper in
saecula saeculorum. Amen.
- Fala em norueguês, imbecil! - exclamou Sofia. As suas palavras ressoaram na
antiga igreja de pedra. Ela sabia que o monge tinha de ser Alberto Knox. Apesar disso,
arrependeu-se de se ter exprimido de uma forma tão irreverente numa igreja antiga. Mas
tivera medo e, quando se tem medo, é por vezes reconfortante quebrar todos os tabus.
- Silêncio!
Alberto levantou uma mão, como um sacerdote que pede à comunidade para se
sentar. 113
- Que horas são, filha? -perguntou.
- Cinco para as quatro - respondeu Sofia, que já não tinha medo.
- Então já é a hora. Agora começa a Idade Média.
-A Idade Média começa às quatro horas? – perguntou Sofia surpreendida.
- Sim, cerca das quatro. Depois eram cinco, seis e sete. Mas o tempo parecia
parado. Passaram as oito, as nove e as dez. Mas estava-se ainda na Idade Média,
compreendes? Tempo, talvez penses, de nos levantarmos para um novo dia. Eu percebo o
que queres dizer. Mas é fim-de-semana, se me entendes, um longo fim-de-semana.
Passaram as onze, doze e treze. Chamamos a esta época a baixa Idade Média. Foram então
construídas as grandes catedrais na Europa. Só cerca das catorze horas cantou aqui e ali um
galo. E só nessa altura começou o seu declínio.
- Então a Idade Média durou dez horas – concluiu Sofia.
Alberto lançou a cabeça para frente espreitando pelo capuz do hábito de monge, e
olhou para a sua comunidade, que naquele momento era constituída apenas por uma moça
de catorze anos.
- Se uma hora dura cem anos, sim. Podemos pensar que Jesus nasceu à meia-noite.
Paulo iniciou as suas viagens missionárias pouco antes da meia noite e meia e morreu um
quarto de hora mais tarde, em Roma. Até às três horas, a Igreja Cristã era mais ou menos
proibida, e no ano de 313 d.C. o cristianismo foi reconhecido como religião no Império
Romano.
Isso sucedeu sendo imperador Constantino, que só foi batizado anos mais tarde no
leito de morte. No ano de 380, o Cristianismo tornou-se a religião do Estado de todo o
Império Romano.
- Mas o Império Romano não entrou em decadência nessa altura?
- Sim, já estava a ruir por todos os lados. Estamos perante uma das mais
importantes transformações culturais da história. No século IV, Roma foi ameaçada tanto
pelas tribos que se aproximavam vindas do Norte como por conflitos internos. No ano de
330, o imperador Constantino transferiu a capital do Império Romano para Constantinopla,
cidade que ele próprio fundara à entrada do mar Negro. A nova cidade foi considerada a
partir de então como a "segunda Roma". No ano de 395, o Império Romano foi dividido -
passou a haver o “Império Romano do Ocidente”, com Roma no centro, e o “Império
Romano do Oriente”, cuja capital era a cidade de Constantinopla. Em 410, Roma foi
saqueada por tribos bárbaras, e em 476 todo o Império Romano do Ocidente caiu. O
Império Romano do Oriente conservou-se até ao ano de 1453, quando os turcos
conquistaram Constantinopla.
- E desde então, a cidade chama-se Istambul?
- Correto. Uma outra data que devemos fixar é o ano de 529. Nesse ano, a
Academia de Platão em Atenas foi encerrada. E nesse mesmo ano, foi fundada a Ordem
Beneditina, a primeira grande ordem monástica. Deste modo, o ano de 529 foi o ano em
que a Igreja Cristã impediu a expansão da filosofia grega. A partir dessa altura, os
conventos detinham o monopólio do ensino, da reflexão e da meditação. A hora avançava
para as cinco e meia...
Sofia já percebera há muito tempo o que Alberto queria dizer com as diversas
horas. A meia noite era o ano 0, a uma era o ano 100 d.C., as seis eram o ano 600 d.C., e as
catorze horas eram o ano de 1400 d.C... Alberto prosseguiu:
- Por "Idade Média", entendemos na realidade o tempo que medeia entre duas
outras épocas. Esta expressão surgiu no Renascimento. Nessa época, a Idade Média era tida 114
como uma longa "noite de mil anos" que tinha obscurecido a Europa entre a Antiguidade e
o Renascimento. Ainda hoje utilizamos a expressão "medieval" pejorativamente para tudo o
que nos parece dogmático e retrógrado. Mas houve também quem tivesse visto a Idade
Média como o "crescimento milenar". Foi na Idade Média, por exemplo, que se formou o
ensino público. Muito cedo surgiram as primeiras escolas nos mosteiros.
No século XII, nasceram as escolas nas catedrais, e a partir do século XIII foram
fundadas as primeiras universidades. Ainda hoje, as disciplinas estão divididas em diversos
grupos ou "faculdades", como na Idade Média.
- Mas mil anos é muito tempo.
- O cristianismo precisava de tempo para ser aceite pelo povo. Além disso, durante
a Idade Média nasceram as diferentes nações - com cidades e castelos, a música e a poesia
populares. O que seriam as lendas e as canções populares sem a Idade Média? Sim, o que
seria a Europa sem a Idade Média? Uma província romana? Mas a ressonância de nomes
como Noruega, Inglaterra ou Alemanha reside precisamente no abismo extraordinário a que
chamamos Idade Média. Nesta profundidade há muitos peixes graúdos, mesmo que não os
possamos encontrar.
Mas Snorri era um homem da Idade Média. E Olaf, o Santo. E Carlos Magno. Para
não falar de Romeu e Julieta, os Nibelungos, a Branca de Neve ou os gigantes das florestas
norueguesas.
E ainda um conjunto de príncipes esplêndidos e reis majestosos, cavaleiros
corajosos e belas donzelas, anônimos pintores de vitrais e geniais construtores de órgãos. E
não mencionei os monges, os cruzados e as bruxas.
- Também ainda não falaste dos sacerdotes.
- Tens razão. O cristianismo só chegou à Noruega após a mudança do milênio, mas
seria um exagero se afirmássemos que a Noruega se tornou um país cristão após a batalha
de Stiklestad. Antigas concepções pagãs coexistiam com a doutrina cristã, e muitos destes
elementos pré-cristãos misturavam-se com os costumes cristãos. Nas festas de Natal
norueguesas, por exemplo, coabitam ainda hoje costumes cristãos e costumes nórdicos
antigos. Subsiste a antiga norma segundo a qual os cônjuges tendem a assemelhar-se cada
vez mais. Apesar disso, temos de sublinhar que o cristianismo se tornou por fim a religião
dominante, pelo que, a Idade Média é considerada um período dominado por uma "cultura
unitária cristã".
- Então não foi apenas um período obscuro e triste?
- Os primeiros cem anos a seguir ao ano 400 trouxeram, de fato, uma decadência
cultural. A época romana foi notável pelo seu alto grau de civilização, com grandes cidades
que dispunham de redes públicas de esgotos, termas públicas e bibliotecas. Para não falar
da arquitetura grandiosa. Toda esta cultura se desmoronou durante os primeiros séculos da
Idade Média. O mesmo sucedeu com o comércio e a economia baseados na moeda. Na
Idade Média, a economia de subsistência e o pagamento em gêneros surgiram de novo. O
feudalismo caracterizou a economia. Feudalismo significa que alguns grandes senhores
possuíam a terra que os camponeses tinham de cultivar para ganhar o seu sustento. Durante
o primeiro século, a densidade populacional também baixou fortemente.
Roma fora na Antiguidade uma cidade com mais de um milhão de habitantes. Já
no século VII, a população da antiga metrópole estava reduzida a quarenta mil habitantes.
Uma população modesta caminhava entre os restos dos opulentos edifícios da época áurea
da cidade. Quando os homens precisavam de materiais de construção, havia suficientes
ruínas antigas de que se podiam servir, motivo de grande desgosto para os arqueólogos 115
atuais, que teriam preferido que os homens da Idade Média tivessem deixado em paz os
monumentos antigos.
- À medida que o tempo passa, sabe-se sempre mais.
- A época de Roma como potência política terminara por volta de finais do século
IV. Mas depressa o bispo de Roma se tornou o chefe de toda a Igreja católica romana.
Recebeu o nome de “papa” - ou "pai" - e, por fim, foi considerado o representante de Jesus
na terra. Por isso, durante quase toda a Idade Média, Roma foi a capital da Igreja. E não
havia muitas pessoas que ousassem "elevar a sua voz contra Roma". Mas, pouco a pouco,
os reis e os príncipes dos novos Estados nacionais ganharam tanto poder que alguns deles
tinham coragem para se oporem ao forte poderio da Igreja.
Sofia fixava o erudito monge.
- Disseste que a Igreja encerrou a Academia de Platão em Atenas. Os filósofos
gregos foram todos esquecidos posteriormente?
- Só em parte. Havia quem conhecesse alguns escritos de Aristóteles, e quem
conhecesse alguns de Platão. Mas o antigo Império Romano dividiu-se progressivamente
em três espaços culturais distintos. Na Europa Ocidental difundiu-se uma cultura cristã de
língua latina, com a capital em Roma. Na Europa Oriental, formou-se uma cultura cristã de
língua grega, com a capital em Constantinopla. Mais tarde, Constantinopla recebeu o nome
grego de Bizâncio. Falamos, portanto, da "Idade Média bizantina", por oposição à "Idade
Média católica romana". Mas também o Norte de África e o Médio Oriente tinham
pertencido ao Império Romano. Estas regiões desenvolveram na Idade Média uma cultura
muçulmana de língua árabe. A seguir à morte de Maomé, no ano de 632, o Médio Oriente e
o Norte de África foram conquistados para o Islã.
Em seguida, também a Espanha foi anexada ao domínio cultural islâmico. O Islã
obteve, por exemplo, os seus lugares sagrados em Meca, Medina, Jerusalém e Bagdad. Do
ponto de vista histórico-cultural é importante reparar que os árabes também tomaram a
antiga cidade helenística de Alexandria. Herdaram, assim, uma grande parte da ciência
grega. Durante toda a Idade Média, os árabes detiveram o papel primordial nas ciências
como a matemática, a química, a astronomia e a medicina. Ainda hoje utilizamos
"algarismos árabes". Em algumas áreas, a cultura árabe era superior à cultura cristã.
- Eu gostava de saber o que é que se passou com a filosofia grega.
- Consegues imaginar um rio que por algum tempo se reparte em três cursos
distintos antes de se juntarem novamente numa grande corrente?
- Estou a imaginar.
- Então também consegues imaginar como a cultura greco-romana foi transmitida,
em parte, através da cultura católica romana no Ocidente, em parte através da cultura
romana no Oriente e em parte através da cultura árabe, no Sul. Mesmo que simplifiquemos
muito, podemos dizer que o neoplatonismo sobreviveu no Ocidente, Platão no Oriente e
Aristóteles no Sul, entre os árabes. É importante o fato de todos os três cursos terem
confluído numa corrente no final da Idade Média, no norte de Itália. Na Espanha, os árabes
contribuíam com influências árabes, a Grécia e Bizâncio com influências gregas. E começa
então o Renascimento, inicia-se o "renascer" da cultura antiga. De certo modo, a cultura
antiga sobrevivera à longa Idade Média.
- Compreendo.
- Mas não nos devemos antecipar ao curso dos acontecimentos. Primeiro, vamos
conversar um pouco acerca da filosofia da Idade Média, minha filha. E não te vou falar
mais do púlpito. Vou descer. 116
Sofia sentia os olhos pesados de sono. Ao ver o estranho monge descer do púlpito
da Igreja de Santa Maria, parecia-lhe estar a sonhar.
Alberto dirigiu-se para a balaustrada do altar. Primeiro, olhou para o altar com o
velho crucifixo. Depois, voltou-se para Sofia, foi ter com ela a passos lentos e sentou-se ao
seu lado no banco.
Era estranho estar tão perto dele. Sob o capuz, Sofia viu dois olhos castanhos de
um homem de meia-idade, de cabelos escuros e pêra. Quem és tu? - pensou ela. Porque é
que apareceste na minha vida?
- Havemos de nos conhecer melhor - afirmou ele, como se lhe tivesse lido os
pensamentos.
Enquanto ali permaneciam, a luz que entrava na igreja através dos vitrais tornavase cada vez mais clara. Alberto Knox começou então a falar da filosofia medieval.
- Os filósofos medievais aceitaram como um dado adquirido que o cristianismo era
a verdade - começou ele. – As questões principais eram outras: temos simplesmente que
acreditar na revelação cristã ou podemos também chegar às verdades cristãs com o auxílio
da razão? Como era a relação entre os filósofos gregos e as doutrinas da Bíblia? Existia
uma contradição entre a Bíblia e a razão, ou a fé e o saber estavam de acordo? Quase toda a
filosofia medieval girava em torno desta questão.
Sofia acenou a cabeça com impaciência. Já respondera a esta questão da fé e do
saber no seu trabalho de religião.
“Santo Agostinho”
- Vamos ver como esta problemática se situa nos filósofos mais importantes da
Idade Média e podemos começar com Santo Agostinho, que viveu entre 354 e 430. Na vida
deste homem podemos estudar a passagem da Antiguidade tardia ao início da Idade Média.
Santo Agostinho nasceu na vila de Tagaste, no norte de África, mas com dezesseis
anos foi estudar para Cartago. Mais tarde, visitou Roma e Milão e passou os últimos anos
da sua vida como bispo de Hipona, a trinta ou quarenta quilômetros a oeste de Cartago.
Mas ele não foi sempre cristão. Santo Agostinho conheceu muitas correntes filosóficas e
religiosas antes de se converter ao cristianismo.
- Podes dar-me exemplos?
- Durante algum tempo, foi “maniqueu”. Os maniqueus pertenciam a uma seita
típica da Antiguidade tardia. Proclamavam uma teoria da salvação em parte religiosa e em
parte filosófica. Dividiam o mundo em bem e mal, luz e trevas, espírito e matéria. Através
do seu espírito, os homens podiam elevar-se acima do mundo material e deste modo criar a
base para a salvação da sua alma. Mas a rigorosa separação entre o bem e o mal não dava
descanso a Santo Agostinho. O jovem Agostinho ocupava-se principalmente com aquilo a
que costumamos chamar "o problema do mal". Por este problema, devemos entender a
questão da origem do mal.
Durante algum tempo, ele foi influenciado pela filosofia estóica, e os estóicos
negavam uma separação clara entre o bem e o mal. Mas acima de tudo, Santo Agostinho foi
influenciado por uma outra corrente filosófica importante da Antiguidade tardia - o
neoplatonismo, que defendia que tudo o que existia era de natureza divina.
- E tornou-se então um bispo neoplatônico?
-Sim, talvez o possas dizer assim. Primeiro que tudo, tornou-se cristão, mas o
cristianismo de Santo Agostinho é, em grande parte, influenciado pelo pensamento 117
platônico. E por isso, Sofia, não há uma ruptura dramática com a filosofia grega quando
entramos na Idade Média cristã. Boa parte da filosofia grega foi levada para a nova época
por padres da Igreja como Santo Agostinho.
- Queres dizer que Santo Agostinho era cinqüenta por cento cristão e cinqüenta por
cento neoplatônico?
-Ele achava-se obviamente cem por cento cristão. Mas não via nenhuma
contradição profunda entre o cristianismo e a filosofia platônica. Os paralelismos entre a
filosofia de Platão e a doutrina cristã pareciam-lhe tão evidentes que se questionava se
Platão não poderia ter conhecido pelo menos partes do Antigo Testamento, o que é
naturalmente muito duvidoso. Podemos, pelo contrário, afirmar que Santo Agostinho
"cristianizou" Platão.
- Pelo menos não rejeitou tudo o que tinha a ver com filosofia, apesar de acreditar
no cristianismo?
- Mostrou que há limites para o alcance da razão em questões religiosas. O
cristianismo é também um mistério divino ao qual só podemos chegar através da fé. Mas
quando acreditarmos no cristianismo, Deus "iluminará" a nossa alma, e então obteremos
uma espécie de saber sobrenatural acerca de Deus. O próprio Santo Agostinho sentira que a
filosofia não podia ser ilimitada. A sua alma só encontrou descanso quando ele se tornou
cristão. "Agitado está o nosso coração, enquanto não repousa em Ti" escreveu.
- Eu não compreendo bem como é que a teoria das idéias de Platão se pôde
conciliar com o cristianismo – objetou Sofia. - O que é que sucede às idéias eternas?
- Santo Agostinho explica que Deus criou o mundo do nada, e isso é uma idéia
bíblica. Os gregos inclinavam-se mais para a idéia de que o mundo existira sempre. Mas,
segundo S. Agostinho, antes de Deus ter criado o mundo as "idéias" existiam no
pensamento de Deus. Ele atribuiu as idéias eternas a Deus e salvou deste modo a concepção
platônica da idéia eterna.
- Muito inteligente!
- Mas isso também mostra como Santo Agostinho e muitos outros padres da Igreja
se esforçaram por conciliar o pensamento grego e o hebraico.
De certo modo, eram cidadãos de duas culturas. Na sua concepção do mal, também
recorre ao neoplatonismo. Achava, como Plotino, que o mal consistia na "ausência" de
Deus. O mal não tem uma existência própria, é algo que não é, porque a Criação de Deus é
apenas boa. O mal surge através da desobediência dos homens, segundo Santo Agostinho.
Ou, usando as suas próprias palavras: a "boa vontade" é "obra de Deus", a "má vontade" é a
"negação da obra de Deus".
- Também acreditava que o homem possui uma alma imortal?
- Sim e não. Santo Agostinho explica que entre Deus e o mundo existe um abismo
insuperável. Baseia-se no fundamento bíblico e rejeita a teoria de Plotino, segundo a qual
tudo é uno. Mas Santo Agostinho também salienta que o homem é um ser espiritual.
Possui um corpo material - que pertence ao mundo físico e é corrompido pelos
agentes naturais -, mas ele também tem uma alma que pode conhecer Deus.
-O que é que acontece à alma quando morremos?
- Segundo Santo Agostinho, toda a geração humana foi condenada após o pecado
original. Apesar disso, Deus decidiu que alguns homens deviam ser poupados à condenação
eterna.
- Mas então também podia ter decidido que ninguém devia estar condenado –
objetou Sofia. 118
- Mas, nesse ponto, Santo Agostinho nega que o homem tenha direito a criticar
Deus. Sustenta o que Paulo escreveu na sua "Epístola aos Romanos": "Ó homem, quem és
tu para disputares com Deus? Acaso uma obra também diz a quem a fez: porque é que me
fizeste assim? Porventura um oleiro não tem poder para fazer da mesma massa um vaso
para bom uso e outro para uso vil?".
- Então Deus está no céu e brinca com os homens? Quando alguma coisa daquilo
que ele mesmo criou não lhe serve, deita-a imediatamente fora?
- É que, para Santo Agostinho, nenhum homem é digno da salvação de Deus. No
entanto, Deus escolheu alguns que devem ser salvos da condenação. Para ele, não é pois um
segredo quem é que deve ser salvo e quem é que deve ser condenado. Isso está determinado
previamente. Logo, nós somos barro nas mãos de Deus. Estamos completamente
dependentes da Sua graça.
- Então ele voltou de certo modo à antiga crença no destino.
-Talvez tenhas razão nisso. Mas Santo Agostinho não retira ao homem a
responsabilidade pela sua própria vida.
Segundo o seu ponto de vista, nós devemos viver de modo a podermos saber que
pertencemos ao número dos eleitos. Não nega que tenhamos livre arbítrio. Só que Deus já
"previu" como é que vamos viver.
-Isso não é um pouco injusto? - perguntou Sofia - Sócrates acreditava que todos os
homens tinham as mesmas possibilidades por partilharem a mesma razão. Mas Santo
Agostinho separava os homens em dois grupos. Um dos grupos é salvo, o outro é
condenado.
- Sim, com a teologia de Santo Agostinho afastamo-nos do humanismo de Atenas.
Mas não era Santo Agostinho que dividia a humanidade em dois grupos. Ele baseia-se na
doutrina da Bíblia acerca da salvação e da condenação. Na sua grande obra A Cidade de
Deus, explica-o mais exatamente.
-Conta!
- A expressão "cidade de Deus" ou "reino de Deus" vem da Bíblia e da mensagem
de Jesus. Santo Agostinho acreditava que a história trata do modo como o combate entre a
"cidade de Deus" e a "cidade terrena" é conduzido.
Estas duas cidades não são Estados políticos distintos um do outro. Lutam pelo
poder em cada homem. A cidade de Deus está presente na Igreja e a cidade terrena nos
Estados políticos - por exemplo, no Império Romano, que começou a desagregar-se
precisamente na época de Santo Agostinho. Esta concepção tornou-se cada vez mais
evidente à medida que a Igreja e o Estado lutavam pelo poder durante toda a Idade Média.
"Não há salvação fora da Igreja", dizia-se. A cidade de Deus de Santo Agostinho
era inclusivamente comparada à Igreja como instituição. Só durante a Reforma, no século
XVI, se levantou um protesto contra a idéia de que o homem tinha que percorrer o caminho
da Igreja para obter a graça divina.
- Já não era sem tempo.
- Também podemos notar que Santo Agostinho foi o primeiro dos nossos filósofos
a incluir a história na sua filosofia. A aceitação de um combate entre o bem e o mal não era
nada de novo. A novidade em Santo Agostinho é que este combate é disputado na história.
Deste ponto de vista, não encontramos nele muito platonismo. Em vez disso, apoia-se
firmemente na concepção linear da história que encontramos no Antigo Testamento. É que
para Santo Agostinho Deus precisa de toda a história para erigir a sua "cidade de Deus". A
história é necessária para instruir os homens e destruir o mal. Em certo passo, Santo 119
Agostinho afirma que a providência divina dirige a história da humanidade desde Adão até
ao fim da história, tal como a história de um único homem que se vai desenrolando
progressivamente desde a infância até à velhice.
Sofia olhou para o relógio.
- Já são oito horas - afirmou - tenho de ir.
- Mas primeiro, vou falar-te do segundo grande filósofo da Idade Média. Vamos
sentar-nos lá fora?
Alberto levantou-se do banco. Juntou as palmas das mãos e avançou pela nave.
Parecia rezar ou meditar em verdades espirituais. Sofia seguia-o; parecia-lhe não ter outra
escolha.
Lá fora, uma fina camada de neblina cobria ainda o solo. O Sol nascera há muitas
horas, mas ainda não conseguira dissolver a neblina matinal.
A igreja de Santa Maria ficava junto ao bairro antigo.
Alberto sentou-se num banco em frente da igreja. Sofia pensou no que sucederia se
alguém passasse naquele momento.
Já era bastante estranho estar ali sentada num banco, às oito da manhã; e o fato de
ter por companhia um monge da Idade Média ainda era mais estranho.
- São oito horas - começou ele. - Desde Santo Agostinho passaram quatro séculos,
e agora começa o longo dia de escola. Até às dez horas, os mosteiros detêm o monopólio do
ensino. Entre as dez e as onze, são estabelecidas as primeiras escolas nas catedrais, e cerca
das doze horas são fundadas as primeiras universidades. Além disso, são construídas as
grandes catedrais. Esta igreja também foi construída cerca das doze horas - ou na chamada
baixa Idade Média. Aqui, nesta cidade, não podiam construir catedrais maiores.
- Também não era preciso - interrompeu Sofia. - Detesto ver as igrejas vazias.
- Mas as grandes catedrais não foram construídas apenas para acolherem grandes
multidões. Foram erigidas em honra de Deus e tinham por si só uma espécie de função
religiosa. Mas na baixa Idade Média sucedeu uma outra coisa que é muito interessante para
filósofos como nós.
-Conta! Alberto prosseguiu:
- Nessa altura, a influência dos árabes era dominante na Espanha. Os árabes tinham
conservado viva durante toda a Idade Média uma tradição aristotélica e, a partir
aproximadamente de 1200, eruditos árabes foram para o Norte de Itália a convite dos
príncipes locais. Assim, muitos dos seus escritos foram divulgados e por fim traduzidos do
grego e do árabe para o latim. E isso, por seu lado, criou um novo interesse no que diz
respeito às ciências da natureza.
Além disso, foi de novo equacionada a relação entre a revelação cristã e a filosofia
grega. Nas questões das ciências naturais, todos os caminhos passavam por Aristóteles.
Mas quando é que se devia escutar o "filósofo" – e quando é que se devia ater
exclusivamente à Bíblia? Ainda estás a seguir?
Sofia acenou vivamente que sim e o monge prosseguiu:
“São Tomás de Aquino”
-O maior e mais importante filósofo da baixa Idade Média foi “S. Tomás de
Aquino”, que viveu entre 1225 e 1274. Era natural da pequena vila de Aquino entre Roma e
Nápoles, mas ensinou em Paris. Eu chamo-lhe filósofo, mas ele era igualmente teólogo.
Nessa altura, não havia uma verdadeira separação entre filosofia e teologia. Muito 120
resumidamente, podemos dizer que S. Tomás "cristianizou" Aristóteles, da mesma forma
que Santo Agostinho o fizera com Platão no início da Idade Média.
- Não era um pouco estranho cristianizar filósofos que tinham vivido tantos
séculos antes de Cristo?
-Sim, mas por "cristianização" dos dois grandes filósofos gregos entendemos que
eles foram interpretados e entendidos de forma a não constituírem uma ameaça para a
doutrina cristã. Acerca de S. Tomás de Aquino, diz-se que "agarrou o touro pelos cornos".
-Eu realmente não sabia que a filosofia tinha alguma coisa a ver com tourada.
- S. Tomás de Aquino fazia parte daqueles que queriam conciliar a filosofia de
Aristóteles com o cristianismo. Dizemos que ele realizou a grande síntese entre fé e saber.
E conseguiu-o por que partiu da filosofia de Aristóteles e a tomou à letra.
- Ou pelos cornos. Infelizmente, esta noite quase não dormi e por isso receio que
tenhas de me explicar isso melhor.
- S. Tomás de Aquino não acreditava numa contradição inevitável entre o que a
filosofia ou a razão, por um lado, e a revelação cristã ou a fé, por outro, nos dizem.
Freqüentemente, o cristianismo e a filosofia dizem-nos o mesmo.
Por isso, podemos examinar com a ajuda da razão as mesmas verdades que lemos
na Bíblia.
- Mas como é que isso é possível? Pode a razão dizer-nos que Deus criou o mundo
em seis dias? Ou que Jesus era filho de Deus?
- Não, só podemos ter acesso a essas "verdades de fé" através da fé e da revelação
cristã. Mas S. Tomás de Aquino achava que havia também uma série de "verdades
teológicas naturais", ou seja, verdades que podem ser alcançadas tanto através da revelação
cristã como através da nossa razão inata ou "natural". Uma verdade dessas é, por exemplo,
dizer-se que Deus existe. S. Tomás acreditava, portanto, em dois caminhos que levam a
Deus. Um dos caminhos passa pela fé e pela revelação, o outro pela razão e pelos sentidos.
Das duas vias, a que passa pela fé e pela revelação é a mais segura, porque podemos
facilmente errar se confiarmos apenas na razão. Mas para S. Tomás não é preciso haver
nenhuma contradição entre a doutrina cristã e um filósofo como Aristóteles.
- Então podemos confiar tanto em Aristóteles como na Bíblia?
- Não, não. Aristóteles só percorre uma parte do caminho, porque não conheceu a
revelação cristã. Mas percorrer apenas uma parte do caminho não significa enganar-se. Por
exemplo, não é falso dizer que Atenas fica na Europa.
Mas também não é muito preciso. Quando um livro apenas te informa que Atenas
é uma cidade européia, devias consultar ainda um atlas. E aí ficas a saber toda a verdade:
Atenas é a capital da Grécia, um pequeno país no sudeste da Europa. Se tiveres
sorte, talvez fiques ainda a saber alguma coisa sobre a Acrópole. Para não falar de Sócrates,
Platão e Aristóteles.
- Mas a primeira informação acerca de Atenas também estava correta.
- Exato! S. Tomás quer mostrar que há apenas uma verdade. Quando Aristóteles
apresenta algo que reconhecemos como verdadeiro por intermédio da razão, isso não entra
em contradição com a doutrina cristã. Podemos obter uma parte da verdade com a ajuda da
razão e da observação – e Aristóteles fala acerca dessas verdades quando, por exemplo,
descreve o reino vegetal e o reino animal. Uma segunda parte da verdade foi-nos revelada
por Deus através da Bíblia. Mas as duas partes da verdade coincidem em muitos pontos
importantes. Há algumas perguntas a que a Bíblia e a razão nos respondem exatamente da
mesma maneira. 121
- Por exemplo, que Deus existe?
- Exato. A filosofia de Aristóteles também pressupunha que Deus existe - ou uma
primeira causa que põe em movimento todos os processos naturais. Mas não descreve Deus
mais detalhadamente.
Aí, temos de nos basear na Bíblia e na mensagem de Jesus.
- Mas é mesmo verdade que Deus exista realmente?
-Isso é obviamente discutível. Mas, ainda hoje, a maior parte das pessoas admitiria
que pelo menos a nossa razão não pode provar que Deus não existe. S. Tomás foi mais
longe. Acreditava poder provar a existência de Deus com base na filosofia de Aristóteles.
- Nada mau!
- Segundo ele, com a razão também podemos reconhecer que tudo tem de ter uma
"primeira causa". Deus, para S. Tomás, revelou-se aos homens por meio da Bíblia e por
meio da razão. Logo, há uma teologia "revelada" e uma teologia "natural". O mesmo se
passa no domínio da moral. Podemos ler na Bíblia como é que devemos viver segundo a
vontade de Deus. Mas Deus também nos dotou de uma consciência que nos habilita a
distinguir o justo do injusto numa base "natural". Também existem "duas vias" para a vida
moral.
Podemos saber que não devemos maltratar os outros mesmo que não tenhamos
lido na Bíblia que devemos tratar os outros como gostaríamos de ser tratados por eles. Mas,
também neste caso, os mandamentos da Bíblia são a norma mais segura.
- Acho que estou a perceber - disse então Sofia. - Da mesma forma, podemos saber
que há uma trovoada quando vemos o relâmpago e ouvimos o trovão.
- É isso. Mesmo que sejamos cegos, podemos ouvir o trovão. E mesmo que
sejamos surdos, podemos ver a trovoada. É óbvio que o melhor é poder ver e ouvir. Mas
não há nenhuma contradição entre aquilo que vemos e o que ouvimos. Pelo contrário – as
duas impressões enriquecem-se mutuamente.
- Compreendo.
- Deixa-me dar mais um exemplo. Quando lês um romance - por exemplo -
“Vitória” de Knut Hamsun... (“).
- De fato, já o li...
- ... não descobres também alguma coisa acerca do autor, só porque lês o romance
escrito por ele?
- Pelo menos posso partir do princípio de que há um autor que escreveu o livro.
-Podes saber algo mais acerca dele?
- Acho que tem uma concepção bastante romântica do amor.
................... “Knut Hamsun (1859-1952) - Escritor norueguês, autor de “Fome”
(1890), “Pan” (1894), “Vitória” (1898) e “Frutos da Terra” (1917). Recebeu em 1920 o
Prêmio Nobel da Literatura.
...............................................
-Ao leres esse romance - uma criação de Hamsun -, também ficas a saber qualquer
coisa acerca do próprio Hamsun. Mas não podes esperar informações muito pessoais sobre
o autor. Podes, por exemplo, saber através de “Vitória” que idade tinha o autor quando o
escreveu, onde morava ou quantos filhos tinha?
- Claro que não.
- Mas uma biografia acerca de Knut Hamsun fornece-te esse tipo de informações.
Só numa biografia - ou autobiografia - podes conhecer melhor a pessoa do autor.
-Sim, é verdade. 122
- A relação entre a Criação de Deus e a Bíblia é mais ou menos assim. Se
observarmos a natureza, podemos saber que Deus existe. Pode mos ver que ele gosta de
flores e de animais, de outra forma não os teria criado.
Mas só encontramos informações acerca de Deus na Bíblia - ou seja, na
autobiografia de Deus.
- Esse é um exemplo inteligente.
- Mm...
Pela primeira vez, Alberto mergulhou nos seus pensamentos e não deu resposta.
- Isso tem alguma coisa a ver com Hilde? – perguntou Sofia.
- Nós nem sequer sabemos se Hilde existe.
- Mas descobrimos aqui e ali vestígios dela. Postais e um lenço de seda, uma
carteira verde, uma meia... Alberto acenou afirmativamente.
- E parece depender do pai de Hilde o número de pistas que quer deixar. Mas, até
agora, só sabemos que existe uma pessoa que escreve os postais. Acho que ele devia
também escrever qualquer coisa acerca de si mesmo. Mas ainda havemos de voltar a falar
sobre isso.
- São doze horas. Eu tenho mesmo de voltar para casa antes do fim da Idade
Média.
- Vou concluir dizendo em poucas palavras como é que S.
Tomás de Aquino adotou a filosofia de Aristóteles em todos os domínios que não
colidiam com a teologia da Igreja. Isso é válido para a sua lógica, a sua filosofia do
conhecimento e ainda para a sua filosofia da natureza.
Ainda te lembras do modo como Aristóteles descreveu uma escala ascendente da
vida, desde as plantas e os animais, até ao homem? Sofia acenou afirmativamente.
- Já Aristóteles acreditava que esta escala remetia para um Deus que representava
uma espécie de vértice máximo da existência. Este esquema era facilmente adaptável à
teologia cristã. S. Tomás acreditava num grau de existência crescente, desde as plantas e os
animais até aos homens, dos homens até aos anjos, e dos anjos até Deus. O homem, tal
como os animais, possui um corpo com órgãos dos sentidos, mas o homem também possui
uma razão que pensa.
Os anjos não têm corpo nem órgãos dos sentidos, mas em vez disso têm uma
inteligência direta e imediata. Não precisam de "discorrer", como os homens, não precisam
fazer deduções. Sabem tudo o que os homens podem saber, mas não precisam avançar
progressivamente às apalpadelas como nós. Uma vez que os anjos não têm corpo, nunca
vão morrer.
Não são eternos como Deus, visto que também eles foram criados por Deus, mas
não têm um corpo do qual poderiam ser separados, e por isso nunca hão-de morrer.
- Isso soa maravilhosamente.
- Mas acima dos anjos reina Deus, Sofia. Ele pode ver e saber tudo numa única
visão de conjunto.
- Nesse caso, também nos está a ver agora.
- Sim, talvez nos esteja a ver. Mas não "agora". Para Deus, o tempo não existe
como para nós. O nosso "agora" não é o "agora" de Deus. O fato de passarem algumas
semanas para nós não significa que também passem para Deus.
- Mas isso é inquietante! - exclamou Sofia, colocando a mão na boca. Alberto
olhou para ela, e Sofia explicou:
- Recebi novamente um postal do pai de Hilde. Escreveu qualquer coisa assim: "Se 123
passa uma semana ou duas para Sofia, não significa que passe o mesmo tempo para nós." É
quase o mesmo que disseste sobre Deus!
Sofia viu que o rosto no capuz castanho se contorceu num veemente trejeito.
- Ele devia ter vergonha!
Sofia não percebeu o que Alberto queria dizer com aquilo. Talvez fosse apenas
uma maneira de falar. E prosseguiu:
- Infelizmente, S. Tomás de Aquino também adotou a concepção aristotélica da
mulher. Talvez ainda te lembres que, para Aristóteles, a mulher era uma espécie de homem
imperfeito. Ele achava ainda que os filhos apenas herdavam as características do pai,
porque a mulher era passiva, enquanto o homem era ativo.
Segundo S. Tomás, estas reflexões estavam de acordo com as palavras da Bíblia –
onde está escrito, por exemplo, que a mulher foi criada da costela do homem.
- Que absurdo!
- Talvez seja importante acrescentar que os mecanismos de ovulação nos
mamíferos só foram descobertos em 1827.
Por isso, talvez não fosse de surpreender que o homem fosse considerado aquele
que fornece a forma e dá a vida na reprodução. Podemos também notar que para S. Tomás
a mulher só era inferior ao homem enquanto criatura física. Para ele, a alma da mulher é tão
importante como a do homem.
No céu, há igualdade entre os sexos, muito simplesmente porque já não há
diferenças corporais entre os sexos.
- Mas isso é um fraco consolo. Na Idade Média não havia filósofas?
- Na Idade Média, a Igreja era fortemente dominada pelos homens. Mas isso não
significa que não tenha havido pensadoras. Uma delas era “Hildegard von Bingen”... Sofia
arregalou os olhos:
- Ela tem alguma coisa a ver com Hilde?
- Que perguntas fazes! Hildegard viveu entre 1098 e 1179 como freira na Renânia.
Era mulher, mas, no entanto, foi pregadora, escritora, médica, botânica e cientista.
Foi um exemplo de que na Idade Média as mulheres eram freqüentemente mais
práticas - e mesmo mais científicas - que os homens.
- Eu perguntei se ela tem alguma coisa a ver com Hilde!
- Existe uma antiga concepção cristã e hebraica segundo a qual Deus não é apenas
homem. Ele também tem um lado feminino ou "natureza maternal". Porque também a
mulher foi criada à imagem de Deus. Em grego, este lado feminino de Deus chamava-se
“Sophia”. "Sophia" ou "sofia" significa "sabedoria".
Sofia abanou a cabeça perplexa. Porque é que nunca ninguém lho dissera? E
porque é que nunca fizera perguntas acerca disso? Alberto prosseguiu:
- Entre os Judeus e na Igreja grega ortodoxa, "sophia" - ou a natureza maternal de
Deus - desempenhou um papel determinado durante a Idade Média. No ocidente caiu em
esquecimento. Mas depois veio Hildegard. Ela conta que Sofia lhe apareceu em visões.
Tinha uma túnica dourada enfeitada de pedras preciosas...
Nesse momento, Sofia levantou-se bruscamente do banco. Sophia mostrara-se a
Hildegard em visões...
- Talvez eu também apareça a Hilde.
Voltou a sentar-se. Pela terceira vez, Alberto colocou-lhe a mão no ombro.
- Isso é o que temos de descobrir. Mas é quase uma hora. Tens de ir para casa
almoçar e nós temos à nossa frente uma nova época. Vou marcar-te um encontro no 124
Renascimento. Hermes irá buscar-te ao jardim.
E com isto o estranho monge levantou-se e caminhou em direção à igreja. Sofia
ficou sentada pensando em Hildegard e Sophia, Hilde e Sofia. De repente, sentiu um
calafrio na espinha. Levantou-se de um pulo e chamou pelo professor de filosofia
disfarçado de monge.
- Na Idade Média havia algum Alberto?
Alberto retardou um pouco os seus passos, virou a cabeça e disse:
- S. Tomás de Aquino teve um professor de filosofia famoso. Chamava-se
“Alberto Magno”! Com isto, inclinou a cabeça e desapareceu na entrada da igreja de Santa
Maria.
Sofia não se deu por satisfeita. Voltou também à igreja. Mas esta estava
completamente vazia. Ter-se-ia ele afundado no chão?
Ao deixar a igreja, o seu olhar pousou numa imagem de Nossa Senhora.
Aproximou-se e examinou-a com minúcia. De repente, descobriu uma gota de água por
baixo de um dos olhos da imagem. Seria uma lágrima?
Sofia precipitou-se para fora da igreja e correu para casa de Jorunn.